14 de outubro de 2014

O demiurgo de Platão e o Deus judaico- cristão: Críticas- Parte II (Final)

   

 Partindo de nossa introdução (Parte I) proponho analisarmos e criticarmos alguns pontos na temática a que nos submetemos. No que diz respeito a cosmovisão platônica protagonizada pelo demiurgo, ressalto dois pontos que me parecem solidamente coerentes: 

      1. Coerência na ordenação do universo: Na Suméria, Egito Antigo, Babilônia, Grécia ou mesmo em outras Civilizações Primevas, era costumeiro tributar todos os acontecimentos, quer na esfera cósmica ou na realidade material coletiva, à ação e intervenção da divindade. Fenômenos naturais, tais como, o nascer e o despontar do sol, a queda das chuvas, raios, relâmpagos e trovões, ou mesmo sentimentos humanos, p. ex., se apaixonar ou enfurecer-se, eram explicados como resultado de vontades e ações dos deuses. Fiéis a esta logica tinham por costume, relacionar os acontecimentos naturais a manifestação dos deuses. Todavia, mesmo antes de Platão, com os pré-socráticos, a saber, Tales de Mileto, Anaxímenes, Anaximandro e Pitágoras, já se buscava uma cosmovisão que se fundamentasse na razão-lógica para explicar a gênese do universo e do homem. Vale muito ressaltar, ao contrário do que muitos pensam, esses filósofos não eram "ateus" ou céticos quanto a existência da  Divindade, muito pelo contrário. Dentro do contexto histórico de sua época, criam sim nos "deuses", inclusive em seu diálogo, como o próprio Timeu, Platão pede a ajuda ao deus para suas exposições. Mas não eram "alienados" nem tampouco "fundamentalistas" (Não sei se é cabível estas colocações com sentidos muito mais contemporâneos), antes como "amantes da sabedoria" e filhos da racionalidade, tencionavam uma coerência para os enigmas da existência. Platão é extremamente conciliador, por um lado não nega a existência de um Criador, por outro, não se faz submisso ao miticismo de sua época. A ideia de Alma múndi em Platão é coerente e mesmo mediadora entre Fé e Ciência. Ora, se temos um universo regido por leis e princípios naturais que a ciência pode identificá-los e explicá-los, isto de forma alguma, significa a inexistência de Deus, pois foi o próprio Deus (ou demiurgo) que não somente edificou o edifício do universo, como pôs-lhe uma alma (leis físicas) que o regem de maneira ordenada e equilibrada.

      2. A superação do determinismo existencial: Vale ressaltar que há variações de determinismos, para nossa análise, cabe o teológico. O determinismo teológico é uma corrente de pensamento que afirma categoricamente "Deus pessoalmente ordena cada acontecimento", ou seja, todo acontecimento quer na esfera universal ou pessoal está pré- ordenada por Deus. Parece original e contemporânea esta ideia, costumeira no Cristianismo medieval e moderno, mas na realidade ela é mais antiga que o próprio Cristianismo, como visto acima.  Na cosmologia de Platão, essa concepção é superada. Se no século XV-XVIII, tivemos um movimento de "culto da razão", com o despertar da renascença e a eclosão do Iluminismo, que visavam, não necessariamente o fim da fé, mas uma valorização maior da razão, como meio explicável-lógico para o cosmos e o homem, a fonte de tudo isto, está em Platão! Ora, ainda que indiretamente e não explicitamente, mas encontramos no pensamento platônico, uma profunda liberdade do indivíduo, trocando por miúdos, o que denominamos de livre-arbítrio. Pensar no demiurgo como a personificação de um deus que não interfere na realidade existencial do individuo é o mesmo que afirmar que o "ser é livre", isto é, não há qualquer divindade ou força que determina o que seremos, mas temos o papel em branco e a caneta nas mãos, nossa História é de autoria pessoal! Por mais análogo e contraditório que possa parecer, mas pensar no "deus indiferente" de Platão se traduz em refletir o humano como autônomo de sua realidade existencial. Metaforicamente, Platão não nos permite pensar no ser humano como marionete nas mãos de um Outro Absoluto que determina tudo, mas, sem negar, a existência deste Outro Absoluto, concebe-o como construtor do universo e possibilitador da vivência livre dos seres criados em seu grande palco. 


      No que diz respeito a concepção de Deus na Teologia cristã, algumas prédicas são necessárias. Primeiro é importante a consciência que o antropomorfismo não é originário do Cristianismo. Descobertas arqueológicas revelam que povos como os sumérios, astecas e maias, tinham por costume reproduzir e representar seus deuses em formatos humanos e principalmente animais. No que tange ao Egito e Grécia, a História nos mostra que caracteristicamente, seus deuses, eram profundamente humanizados e marcados pelos sentimentos e paixões que são exclusivamente humanos. Vale esta ressalva, pois percebo muitos críticos se insurgindo contra a teologia cristã, sob a argumentação de que nosso Deus é humano demais, na realidade esta característica é milenar e mais antiga que nossa própria construção teológica. Vale citar o Filósofo e Teólogo Ludwig Feuerbach, "Toda teologia é antropomórfica, já que Deus é, essencialmente, a projeção do potencial humano não alcançado" (FEUERBACH, 1870).

      A exemplo do que fiz quanto ao demiurgo, quero fazer quanto ao Deus concebido pelos cristãos, analisar e tecer críticas sobre dois pontos.

      1. Antropomorfização como possibilidade não incoerente: Se me perguntassem, como eu explicaria Deus, utilizando uma só palavra, minha resposta fatalmente seria: Mistério! Dentre tantas inquietações que perpassam pela alma humana, certamente o questionamento incômodo pelo "problema" que denominados Deus, tem lugar privilegiado. Mas, o ponto de partida para compreender Deus é se conscientizar que "Deus é incompreensível!". Perpassando pelas Escrituras, soa claro que os autores sacros, tinham isto em mente. Em sua carta a Timóteo, S. Paulo afirma categoricamente, Deus "É o único que possui a imortalidade, que habita em luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver" ( VI,16). De todos os textos das Escrituras, este é um dos que mais provoca-me fascínio e inquietações. Em três palavras, Paulo carateriza Deus com maestria: Imortalidade, Inacessibilidade e Invisibilidade, isto é, o Deus crido pela fé cristã, não tem origem, pois é o "Criador Incriado", ao mesmo tempo, não pode ser acessado, haja visto é o "Totalmente Outro" e tampouco pode ser capturado pela nossa visão, pois é "Espírito Invisível". Há ainda dois conceitos fundamentais na concepção de Deus: Transcendência e Imanência. O aspecto transcendente de Deus denomina-O como "Totalmente Outro", isto é, Deus é tudo que não sou e eu sou tudo que Deus não é, p. ex., Onipotente, Onipresente, Onisciente, Eterno, etc. No que diz respeito a Imanência, tange a emanação, isto é, presença evidente de Deus no mundo material. Ora, se Deus é essencialmente "Totalmente Outro", que não posso ver ou conhecer na sua essencialidade, passo a acreditar que o Antropomorfismo se torna uma possibilidade coerente na tentativa de representar o Impossível. Isto não quer dizer que "desqualifico Deus humanizando-O", mas que compreendo muito melhor Deus se quebro o muro da transcendência e trago-O pra dentro da minha humanidade. É óbvio que Deus não tem olhos, mãos, pés como narra a Escritura, mas como posso compreender alguém totalmente desconhecido sem utilizar do recurso linguístico que me faça compreensível sua incompreensibilidade? O demiurgo de Platão é um deus coerente, mas é no Deus dos cristãos que nós podemos encontrar o Deus presente, chamado Emanuel= Deus conosco! O demiurgo de Platão satisfaz minha necessidade intelectual, mas como não sou somente intelecto, me é muito mais atrativo o Deus da Fé cristã que comunga nas variações da minha sentimentalidade.

      2. O relojoeiro não criou apenas ponteiros: O demiurgo do nosso gênio Platão, funciona na linguagem deísta como um "relojoeiro mecanicista", expressão muito comum, para exemplificar a compreensão do  deus indiferente. Eu concordaria plenamente com os deístas no que tange a esta metáfora, se o relojoeiro tivesse criado somente ponteiros. Sim, quanto as leis que regem o universo podemos compará-las aos ponteiros que funcionam mecanicamente obedecendo princípios, talvez, imutáveis e garantindo a ordem do cosmos. Mas quanto ao ser humano (quer compreendido no criacionismo- direto ou no criacionismo- indireto, a saber, o evolucionismo) não somos seres amorfos. Se um homem cria um relógio, de fato não precisa criar qualquer tipo de relação, mas quando um homem tem um filho a necessidade da relação é emergente. Isto não quer dizer que Deus tenha que se relacionar com os homens por necessidade, mas por vontade. Convenhamos que por vezes, os autores bíblicos exageraram em suas antropopatias, isto é, atribuir sentimentos humanos a Deus, em certas situações, inverteram a ordem da criação: criaram um deus a sua imagem humana e semelhança, mas me chama atenção o aspecto relacional da concepção cristã de Deus. Para a Teologia cristã, Deus não é o "Outro isolado e solitário", ao contrário, o Deus dos cristãos é sociável, tão sociável que, na fé cristã, deixou seu lugar "Eterno de totalmente outro" e se encarnou em forma humana habitando entre nós. É ilógico uma aceitação literal deste Deus inflamado das Escrituras, p. ex., arrependido, raivoso e vingativo (Deus não é atingido ou manipulado por sentimentos exclusivamente humanos!), mas numa sociedade pós- moderna cada vez mais individualista e indiferente, fria e precisando de uma reforma de valores e relações, o demiurgo de Platão não pode ser evocado, ele pouco se importa e não interfere no mundo dos homens. Ao contrário, o Deus apresentado, especialmente no Novo Testamento, representado como Aba, um pai amoroso, ativo e participativo na realidade humana, pronto a quebrar as barreiras das diferenças que nos caraterizam e "reconciliar o mundo consigo mesmo" formando uma grande família, este Deus da utopia cristã, me soa como uma opção plausível...


(Cabe ressaltar que este tema é muito amplo e com posicionamentos diversificados. Este artigo é um modesto ensaio, não- dogmático e aberto a outras observações, quer provocativas, críticas ou comungais, afinal, dizia Voltaire: "Posso não concordar com uma só palavra que disser, mas defenderei até a morte: Você tem o direito de dizê-las!")






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