É fato inquestionável hoje que a Igreja se tornou um agente social. Formadora de opiniões, modeladora de pensamentos e influenciadora de comportamentos humanos nas suas múltiplas repartições. Da conversão do imperador Constantino no século IV em diante o cristianismo tomou novas formas- senão diferentes, no mínimo contraditórias- em relação a sua forma original, ou seja, a pequena comunidade messiânica que girava em torno de uma figura escatológica, a saber, Jesus de Nazaré, se tornou uma instituição colossal de caráter mais político, que religioso. Abandonando sua modelagem judaica se revestiu de uma nova roupagem romana- imperial, prova evidente disto é o fato de religião e política se confundirem na Idade Média e a Igreja revogar para si, não apenas o poder espiritual, mas também temporal, ou seja, o cristianismo assumiu sua posição política e representado nas cruzadas conseguiu a legitimação do poder político com uma linguagem religiosa.
Como uma Igreja imperial não havia abertura da instituição. Qualquer que pensasse ou ousasse a expor qualquer pensamento ou ideia descomunal com o pensamento dominante era demonizado com a rotulação de herege e não apenas sua pobre alma, mas seu corpo queimaria nas fogueiras, quer do diabo, quer dos homens. O período medieval nos deixa a clara lição de que qualquer forma de totalitarismo, imperialismo e fundamentalismo sempre culminarão no atentado a dignidade humana, pois nos enclausurará na dicotomia: Eu sou o santo, o Outro é o demônio.
Muitos contemporâneos se assustam com os atos terroristas cometidos pelos fanáticos islamitas, atos macabros legitimados pelo fundamentalismo religioso, mas o que vemos os fundamentalistas islâmicos fazerem hoje, não difere do que o fundamentalismo cristão fez ao longo de quase toda a Idade Média: Se insurgiram contra a vida em nome de quem delegam a origem dela, Deus!
Certamente os religiosos não comungariam desta opinião, mas a ideologia do Renascimento e do Iluminismo, foram uma benção para a história humana, pois desvendou nossos olhos e nos fizeram enxergar na luz da razão o lugar "sagrado" do diálogo que precisa ser cultuado nas relações humanas. O "Profeta francês do Iluminismo" Voltaire já declamava "Posso não concordar com uma só palavra que você disser, mas defenderei até a morte: você tem todo o direito de dizê-las!". Admita ou não, mas a Igreja sofreu alterações nas suas concepções e metodologias, suas relações com o diferente-de-si precisaram ser repensadas e reinventadas.
Ao menos no que diz respeito a representação Católica Romana do cristianismo, muitas mudanças se evidenciaram como, por exemplo, o fim da dicotomia fé x razão ou fé x ciência, interpretadas agora, não mais como contraditórias, mas complementares. A abertura ao ecumenismo, o que não significa o sincretismo religioso, mas abertura dialogal com o diferente. Mais espaço ao laicato, o que aponta, especialmente na figura do Papa Francisco (Ver. Encíclica Evangelli Gaudium) uma Igreja descentralizada do clero, da cúria e mesmo da figura do Papa e formada de "baixo pra cima", isto é, a partir do povo, contrariando sua formação histórico- imperial desde Constantino no século IV.
Mas no que diz respeito ao meio Evangélico já não se pode escrever com tanto otimismo. Os evangélicos (ao menos a maioria expressiva) representam a ala esmagadora do fundamentalismo religioso brasileiro. Crença acrítica. Literalismo radical. Inaptidão ao diálogo. Beatificação de si mesmo e demonização do outro. Esses são alguns dos elementos que perfazem o DNA da maioria quase total dos evangélicos no Brasil.
O mundo se reinventa. As religiões também precisam se reinventar, isto inclui o cristianismo. Se reinventar aqui, não significa necessariamente, desconstruir todo o edifício no qual a velha cristandade se erigiu ao longo de mais de dois mil anos e começar do ponto zero, não! Reinventar no sentido que proponho, se traduz em saber ler e compreender o mundo de hoje, totalmente outro em relação ao mundo de Jesus ou dos apóstolos de dois milênios atrás ou mesmo do mundo Medieval onde a Igreja foi soberana e seu modelo imperial dominou. O mundo de hoje é plural, onde os meios tecnológicos permitem uma inter-relação jamais imaginada, as informações borbulham não mais apenas nos livros armazenados nas bibliotecas, mas nas páginas da internet. As pessoas de hoje só são ignorantes se quiserem, pois temos acessibilidade. Não se acredita em mais nada sem se questionar (somente os ignorantes passivos), as pessoas não têm mais medo do demônio ou do fogo do inferno, a maioria interpreta- os como "mitos medievais" ou como mecanismo de dominação religiosa ultrapassado. Filhos de pais de classe baixa (como eu) estão ingressos em Universidades conquistando suas graduações, mestrados e doutorados, o ceticismo ganha cada vez mais espaço nas mentes questionadoras movidas pelo fogo da dúvida e da prova.
Uma Igreja dogmática que impõe verdades inquestionáveis é superada. Não se impõe mais nada a ninguém. As pessoas hoje questionam, indagam, querem explicações coerentes e provas irrefutáveis. Por séculos, a Igreja beatificou a fé cega e demonizou os espíritos críticos, mas a sociedade reverteu o panorama, beatificou os espíritos críticos e demonizou a fé cega e acrítica. Penso que a Igreja precisa repensar suas metodologias. Jesus não anunciou uma comunidade eclesial, fora do mundo, pelo contrário no mundo, ora, se por fé, os cristãos creem num futuro no lugar idealizado fora do mundo, ou seja, o céu, isto é uma "recompensa futura". O presente da Igreja é aqui e agora, na relação com o outro no palco da existência que é o mundo. Jesus deu o exemplo, viveu uma vida em diálogo com o mundo de seu tempo: dialogou com Mestres da Lei (Lc. II.45-47) Políticos (Jo. XIX. 10-11) Marginalizados (Mc. X.49-52) dentre tantas outras figuras. Desde crianças, perpassando por pessoas de diferentes camadas sociais, quer cobradores de impostos, chefes de sinagogas ou leprosos e ladrões, Jesus era dialógico, isto é o que anuncia os Evangelhos.
Concluo minha reflexão, evocando o fim do fundamentalismo, e reafirmo minha posição de que um ateu moderado faz mais bem ao mundo que um crente fanático. Evoco ainda a Igreja para repensarmos nosso lugar, posicionamento e relação no e com o mundo, sem desafiar as palavras de Cristo "As portas do inferno não prevaleceram contra minha Igreja" (Mt. XVI.18), mas talvez não sejam as "portas do inferno", mas a ignorância e a intolerância religiosa a maior ameaça a prevalecer contra a Igreja, ouso pensar, que a Igreja do futuro será dialogal ou teremos um futuro sem Igreja!