25 de janeiro de 2015

Igreja Dialogal: Igreja do Futuro ou Futuro sem Igreja

     É fato inquestionável hoje que a Igreja se tornou um agente social. Formadora de opiniões, modeladora de pensamentos e influenciadora de comportamentos humanos nas suas múltiplas repartições. Da conversão do imperador Constantino no século IV em diante o cristianismo tomou novas formas- senão diferentes, no mínimo contraditórias- em relação a sua forma original, ou seja, a pequena comunidade messiânica que girava em torno de uma figura escatológica, a saber, Jesus de Nazaré, se tornou uma instituição colossal de caráter mais político, que religioso. Abandonando sua modelagem judaica se revestiu de uma nova roupagem romana- imperial, prova evidente disto é o fato de religião e política se confundirem na Idade Média e a Igreja revogar para si, não apenas o poder espiritual, mas também temporal, ou seja, o cristianismo assumiu sua posição política e representado nas cruzadas conseguiu a legitimação do poder político com uma linguagem religiosa.
     Como uma Igreja imperial não havia abertura da instituição. Qualquer que pensasse ou ousasse a expor qualquer pensamento ou ideia descomunal com o pensamento dominante era demonizado com a rotulação de herege e não apenas sua pobre alma, mas seu corpo queimaria nas fogueiras, quer do diabo, quer dos homens. O período medieval nos deixa a clara lição de que qualquer forma de totalitarismo, imperialismo e fundamentalismo sempre culminarão no atentado a dignidade humana, pois nos enclausurará na dicotomia: Eu sou o santo, o Outro é o demônio.
     Muitos contemporâneos se assustam com os atos terroristas cometidos pelos fanáticos islamitas, atos macabros legitimados pelo fundamentalismo religioso, mas o que vemos os fundamentalistas islâmicos fazerem hoje, não difere do que o fundamentalismo cristão fez ao longo de quase toda a Idade Média: Se insurgiram contra a vida em nome de quem delegam a origem dela, Deus!
     Certamente os religiosos não comungariam desta opinião, mas a ideologia do Renascimento e do Iluminismo, foram uma benção para a história humana, pois desvendou nossos olhos e nos fizeram enxergar na luz da razão o lugar "sagrado" do diálogo que precisa ser cultuado nas relações humanas. O "Profeta francês do Iluminismo" Voltaire já declamava "Posso não concordar com uma só palavra que você disser, mas defenderei até a morte: você tem todo o direito de dizê-las!". Admita ou não, mas a Igreja sofreu alterações nas suas concepções e metodologias, suas relações com o diferente-de-si precisaram ser repensadas e reinventadas.
     Ao menos no que diz respeito a representação Católica Romana do cristianismo, muitas mudanças se evidenciaram como, por exemplo, o fim da dicotomia fé x razão ou fé x ciência, interpretadas agora, não mais como contraditórias, mas complementares. A abertura ao ecumenismo, o que não significa o sincretismo religioso, mas abertura dialogal com o diferente. Mais espaço ao laicato, o que aponta, especialmente na figura do Papa Francisco (Ver. Encíclica Evangelli Gaudium) uma Igreja descentralizada do clero, da cúria e mesmo da figura do Papa e formada de "baixo pra cima", isto é, a partir do povo, contrariando sua formação histórico- imperial desde Constantino no século IV.
     Mas no que diz respeito ao meio Evangélico já não se pode escrever com tanto otimismo. Os evangélicos (ao menos a maioria expressiva) representam a ala esmagadora do fundamentalismo religioso brasileiro. Crença acrítica. Literalismo radical. Inaptidão ao diálogo. Beatificação de si mesmo e demonização do outro. Esses são alguns dos elementos que perfazem o DNA da maioria quase total dos evangélicos no Brasil. 
     O mundo se reinventa. As religiões também precisam se reinventar, isto inclui o cristianismo. Se reinventar aqui, não significa necessariamente, desconstruir todo o edifício no qual a velha cristandade se erigiu ao longo de mais de dois mil anos e começar do ponto zero, não! Reinventar no sentido que proponho, se traduz em saber ler e compreender o mundo de hoje, totalmente outro em relação ao mundo de Jesus ou dos apóstolos de dois milênios atrás ou mesmo do mundo Medieval onde a Igreja  foi soberana e seu modelo imperial dominou. O mundo de hoje é plural, onde os meios tecnológicos permitem uma inter-relação jamais imaginada, as informações borbulham não mais apenas nos livros armazenados nas bibliotecas, mas nas páginas da internet. As pessoas de hoje só são ignorantes se quiserem, pois temos acessibilidade. Não se acredita em mais nada sem se questionar (somente os ignorantes passivos), as pessoas não têm mais medo do demônio ou do fogo do inferno, a maioria interpreta- os como  "mitos medievais" ou como mecanismo de dominação religiosa ultrapassado. Filhos de pais de classe baixa (como eu) estão ingressos em Universidades conquistando suas graduações, mestrados e doutorados, o ceticismo ganha cada vez mais espaço nas mentes questionadoras movidas pelo fogo da dúvida e da prova.
     Uma Igreja dogmática que impõe verdades inquestionáveis é superada. Não se impõe mais nada a ninguém. As pessoas hoje questionam, indagam, querem explicações coerentes e provas irrefutáveis. Por séculos, a Igreja beatificou a fé cega e demonizou os espíritos críticos, mas a sociedade reverteu o panorama, beatificou os espíritos críticos e demonizou a fé cega e acrítica. Penso que a Igreja precisa repensar suas metodologias. Jesus não anunciou uma comunidade eclesial, fora do mundo, pelo contrário no mundo, ora, se por fé, os cristãos creem num futuro no lugar idealizado fora do mundo, ou seja, o céu, isto é uma "recompensa futura". O presente da Igreja é aqui e agora, na relação com o outro no palco da existência que é o mundo. Jesus deu o exemplo, viveu uma vida em diálogo com o mundo de seu tempo: dialogou com  Mestres da Lei (Lc. II.45-47) Políticos (Jo. XIX. 10-11) Marginalizados (Mc. X.49-52) dentre tantas outras figuras. Desde crianças, perpassando por pessoas de diferentes camadas sociais, quer cobradores de impostos, chefes de sinagogas ou leprosos e ladrões, Jesus era dialógico, isto é o que anuncia os Evangelhos.
     Concluo minha reflexão, evocando o fim do fundamentalismo, e reafirmo minha posição de que um ateu moderado faz mais bem ao mundo que um crente fanático. Evoco ainda a Igreja para repensarmos nosso lugar, posicionamento e relação no e com o mundo, sem desafiar as palavras de Cristo "As portas do inferno não prevaleceram contra minha Igreja" (Mt. XVI.18), mas talvez não sejam as "portas do inferno", mas a ignorância e a intolerância religiosa a maior ameaça a prevalecer contra a Igreja, ouso pensar, que a Igreja do futuro será dialogal ou teremos um futuro sem Igreja!
    
    

14 de outubro de 2014

O demiurgo de Platão e o Deus judaico- cristão: Críticas- Parte II (Final)

   

 Partindo de nossa introdução (Parte I) proponho analisarmos e criticarmos alguns pontos na temática a que nos submetemos. No que diz respeito a cosmovisão platônica protagonizada pelo demiurgo, ressalto dois pontos que me parecem solidamente coerentes: 

      1. Coerência na ordenação do universo: Na Suméria, Egito Antigo, Babilônia, Grécia ou mesmo em outras Civilizações Primevas, era costumeiro tributar todos os acontecimentos, quer na esfera cósmica ou na realidade material coletiva, à ação e intervenção da divindade. Fenômenos naturais, tais como, o nascer e o despontar do sol, a queda das chuvas, raios, relâmpagos e trovões, ou mesmo sentimentos humanos, p. ex., se apaixonar ou enfurecer-se, eram explicados como resultado de vontades e ações dos deuses. Fiéis a esta logica tinham por costume, relacionar os acontecimentos naturais a manifestação dos deuses. Todavia, mesmo antes de Platão, com os pré-socráticos, a saber, Tales de Mileto, Anaxímenes, Anaximandro e Pitágoras, já se buscava uma cosmovisão que se fundamentasse na razão-lógica para explicar a gênese do universo e do homem. Vale muito ressaltar, ao contrário do que muitos pensam, esses filósofos não eram "ateus" ou céticos quanto a existência da  Divindade, muito pelo contrário. Dentro do contexto histórico de sua época, criam sim nos "deuses", inclusive em seu diálogo, como o próprio Timeu, Platão pede a ajuda ao deus para suas exposições. Mas não eram "alienados" nem tampouco "fundamentalistas" (Não sei se é cabível estas colocações com sentidos muito mais contemporâneos), antes como "amantes da sabedoria" e filhos da racionalidade, tencionavam uma coerência para os enigmas da existência. Platão é extremamente conciliador, por um lado não nega a existência de um Criador, por outro, não se faz submisso ao miticismo de sua época. A ideia de Alma múndi em Platão é coerente e mesmo mediadora entre Fé e Ciência. Ora, se temos um universo regido por leis e princípios naturais que a ciência pode identificá-los e explicá-los, isto de forma alguma, significa a inexistência de Deus, pois foi o próprio Deus (ou demiurgo) que não somente edificou o edifício do universo, como pôs-lhe uma alma (leis físicas) que o regem de maneira ordenada e equilibrada.

      2. A superação do determinismo existencial: Vale ressaltar que há variações de determinismos, para nossa análise, cabe o teológico. O determinismo teológico é uma corrente de pensamento que afirma categoricamente "Deus pessoalmente ordena cada acontecimento", ou seja, todo acontecimento quer na esfera universal ou pessoal está pré- ordenada por Deus. Parece original e contemporânea esta ideia, costumeira no Cristianismo medieval e moderno, mas na realidade ela é mais antiga que o próprio Cristianismo, como visto acima.  Na cosmologia de Platão, essa concepção é superada. Se no século XV-XVIII, tivemos um movimento de "culto da razão", com o despertar da renascença e a eclosão do Iluminismo, que visavam, não necessariamente o fim da fé, mas uma valorização maior da razão, como meio explicável-lógico para o cosmos e o homem, a fonte de tudo isto, está em Platão! Ora, ainda que indiretamente e não explicitamente, mas encontramos no pensamento platônico, uma profunda liberdade do indivíduo, trocando por miúdos, o que denominamos de livre-arbítrio. Pensar no demiurgo como a personificação de um deus que não interfere na realidade existencial do individuo é o mesmo que afirmar que o "ser é livre", isto é, não há qualquer divindade ou força que determina o que seremos, mas temos o papel em branco e a caneta nas mãos, nossa História é de autoria pessoal! Por mais análogo e contraditório que possa parecer, mas pensar no "deus indiferente" de Platão se traduz em refletir o humano como autônomo de sua realidade existencial. Metaforicamente, Platão não nos permite pensar no ser humano como marionete nas mãos de um Outro Absoluto que determina tudo, mas, sem negar, a existência deste Outro Absoluto, concebe-o como construtor do universo e possibilitador da vivência livre dos seres criados em seu grande palco. 


      No que diz respeito a concepção de Deus na Teologia cristã, algumas prédicas são necessárias. Primeiro é importante a consciência que o antropomorfismo não é originário do Cristianismo. Descobertas arqueológicas revelam que povos como os sumérios, astecas e maias, tinham por costume reproduzir e representar seus deuses em formatos humanos e principalmente animais. No que tange ao Egito e Grécia, a História nos mostra que caracteristicamente, seus deuses, eram profundamente humanizados e marcados pelos sentimentos e paixões que são exclusivamente humanos. Vale esta ressalva, pois percebo muitos críticos se insurgindo contra a teologia cristã, sob a argumentação de que nosso Deus é humano demais, na realidade esta característica é milenar e mais antiga que nossa própria construção teológica. Vale citar o Filósofo e Teólogo Ludwig Feuerbach, "Toda teologia é antropomórfica, já que Deus é, essencialmente, a projeção do potencial humano não alcançado" (FEUERBACH, 1870).

      A exemplo do que fiz quanto ao demiurgo, quero fazer quanto ao Deus concebido pelos cristãos, analisar e tecer críticas sobre dois pontos.

      1. Antropomorfização como possibilidade não incoerente: Se me perguntassem, como eu explicaria Deus, utilizando uma só palavra, minha resposta fatalmente seria: Mistério! Dentre tantas inquietações que perpassam pela alma humana, certamente o questionamento incômodo pelo "problema" que denominados Deus, tem lugar privilegiado. Mas, o ponto de partida para compreender Deus é se conscientizar que "Deus é incompreensível!". Perpassando pelas Escrituras, soa claro que os autores sacros, tinham isto em mente. Em sua carta a Timóteo, S. Paulo afirma categoricamente, Deus "É o único que possui a imortalidade, que habita em luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver" ( VI,16). De todos os textos das Escrituras, este é um dos que mais provoca-me fascínio e inquietações. Em três palavras, Paulo carateriza Deus com maestria: Imortalidade, Inacessibilidade e Invisibilidade, isto é, o Deus crido pela fé cristã, não tem origem, pois é o "Criador Incriado", ao mesmo tempo, não pode ser acessado, haja visto é o "Totalmente Outro" e tampouco pode ser capturado pela nossa visão, pois é "Espírito Invisível". Há ainda dois conceitos fundamentais na concepção de Deus: Transcendência e Imanência. O aspecto transcendente de Deus denomina-O como "Totalmente Outro", isto é, Deus é tudo que não sou e eu sou tudo que Deus não é, p. ex., Onipotente, Onipresente, Onisciente, Eterno, etc. No que diz respeito a Imanência, tange a emanação, isto é, presença evidente de Deus no mundo material. Ora, se Deus é essencialmente "Totalmente Outro", que não posso ver ou conhecer na sua essencialidade, passo a acreditar que o Antropomorfismo se torna uma possibilidade coerente na tentativa de representar o Impossível. Isto não quer dizer que "desqualifico Deus humanizando-O", mas que compreendo muito melhor Deus se quebro o muro da transcendência e trago-O pra dentro da minha humanidade. É óbvio que Deus não tem olhos, mãos, pés como narra a Escritura, mas como posso compreender alguém totalmente desconhecido sem utilizar do recurso linguístico que me faça compreensível sua incompreensibilidade? O demiurgo de Platão é um deus coerente, mas é no Deus dos cristãos que nós podemos encontrar o Deus presente, chamado Emanuel= Deus conosco! O demiurgo de Platão satisfaz minha necessidade intelectual, mas como não sou somente intelecto, me é muito mais atrativo o Deus da Fé cristã que comunga nas variações da minha sentimentalidade.

      2. O relojoeiro não criou apenas ponteiros: O demiurgo do nosso gênio Platão, funciona na linguagem deísta como um "relojoeiro mecanicista", expressão muito comum, para exemplificar a compreensão do  deus indiferente. Eu concordaria plenamente com os deístas no que tange a esta metáfora, se o relojoeiro tivesse criado somente ponteiros. Sim, quanto as leis que regem o universo podemos compará-las aos ponteiros que funcionam mecanicamente obedecendo princípios, talvez, imutáveis e garantindo a ordem do cosmos. Mas quanto ao ser humano (quer compreendido no criacionismo- direto ou no criacionismo- indireto, a saber, o evolucionismo) não somos seres amorfos. Se um homem cria um relógio, de fato não precisa criar qualquer tipo de relação, mas quando um homem tem um filho a necessidade da relação é emergente. Isto não quer dizer que Deus tenha que se relacionar com os homens por necessidade, mas por vontade. Convenhamos que por vezes, os autores bíblicos exageraram em suas antropopatias, isto é, atribuir sentimentos humanos a Deus, em certas situações, inverteram a ordem da criação: criaram um deus a sua imagem humana e semelhança, mas me chama atenção o aspecto relacional da concepção cristã de Deus. Para a Teologia cristã, Deus não é o "Outro isolado e solitário", ao contrário, o Deus dos cristãos é sociável, tão sociável que, na fé cristã, deixou seu lugar "Eterno de totalmente outro" e se encarnou em forma humana habitando entre nós. É ilógico uma aceitação literal deste Deus inflamado das Escrituras, p. ex., arrependido, raivoso e vingativo (Deus não é atingido ou manipulado por sentimentos exclusivamente humanos!), mas numa sociedade pós- moderna cada vez mais individualista e indiferente, fria e precisando de uma reforma de valores e relações, o demiurgo de Platão não pode ser evocado, ele pouco se importa e não interfere no mundo dos homens. Ao contrário, o Deus apresentado, especialmente no Novo Testamento, representado como Aba, um pai amoroso, ativo e participativo na realidade humana, pronto a quebrar as barreiras das diferenças que nos caraterizam e "reconciliar o mundo consigo mesmo" formando uma grande família, este Deus da utopia cristã, me soa como uma opção plausível...


(Cabe ressaltar que este tema é muito amplo e com posicionamentos diversificados. Este artigo é um modesto ensaio, não- dogmático e aberto a outras observações, quer provocativas, críticas ou comungais, afinal, dizia Voltaire: "Posso não concordar com uma só palavra que disser, mas defenderei até a morte: Você tem o direito de dizê-las!")